sábado, 6 de novembro de 2010

A cultura industrializada dos reality shows

Em reality shows, os elevados índices de audiência fazem parte, geralmente, de suas fórmulas. Segundo Silveira (2008), uma peculiaridade desse formato é a junção de características oriundas de diversos outros gêneros. No caso da aposta mais bem sucedida do país, o Big Brother Brasil, é possível identificar, por exemplo, traços de “talk shows” (entrevistas), “game shows” (participantes submetidos a provas), programas de auditório (platéia em dias de eliminação) e novelas (a cada dia um episódio). Tais flertes resultam em uma receita composta de ingredientes já aprovados pelo público televisivo, visando atender ao máximo o gosto do espectador.

Silveira, em seu artigo, argumenta que a maioria dos seres humanos é naturalmente interessada no chamado voyeurismo, o ato de observar o outro sem ser visto, pregado livremente por reality shows. O fato é que, para incrementar o apelo ao espectador, os participantes são escolhidos a dedo, de maneira a reunir estereótipos que despertem nossas curiosidades. Sendo assim, a febre mundial por programas do formato se dá através da extrema sedução exercida e previamente planejada pelas emissoras de TV. Portanto, a mídia não determina o comportamento humano, mas sim o direciona.

É presumível apontar a chamada hiper-realidade contida não apenas em reality shows, mas em toda a programação televisiva, como responsável em grande parcela pelo processo de alienação em massa. “O hiper-real simulado nos fascina porque é o real intensificado na cor, na forma, no tamanho, nas suas propriedades. É um quase sonho. Veja uma dose do iogurte Danone em revistas ou na TV. Sua superfície é enorme, lustrosa, sedutora, tátil — dá água na boca. O Danone verdadeiro é um alimento mixuruca, mas seu simulacro hiper-realizado amplifica, satura sua realidade. Com isso, somos levados a exagerar nossas expectativas e modelamos nossa sensibilidade por imagens sedutoras” (dos Santos, 1986). Portanto, o telespectador, ao assistir a seu reality preferido, não reflete sobre sua artificialidade, deixa-se enfeitiçar pela estética hiper-real e ilude-se com a proposta de não-ficção.

O filme O Show de Truman (1998) retrata bem esse fenômeno no contexto do reality show. O protagonista, Truman (Jim Carrey), é um indivíduo filmado 24 horas por dia desde o seu nascimento em uma mega-cidade cenográfica, tendo sua vida transmitida num badalado espetáculo de TV. Não sabendo de sua condição, o personagem vive em uma hiper-realidade idealizada, onde todos a sua volta são atores que determinam seu destino, de modo a tirar-lhe o livre-arbítrio. Embora a proposta seja artificial e desumana, o público, a favor ou não da liberdade de Truman, permanece passivo e hipnotizado pela espetacularização da vida, apenas sintonizado em cada episódio que é transmitido. Mesmo havendo inserções publicitárias, episódios diários, atores profissionais e outras muitas propriedades de um produto de TV, para o espectador ele assiste a pura realidade, alienando-se, inclusive, de sua própria, a verdadeira.

Teixeira Coelho (1989) cita Karl Marx quando diz que todo produto tem em si vestígios do sistema que o produziu. Considerando tal afirmação, seria ingênuo ignorar que atributos típicos do sistema capitalista atual estariam enraizados na estrutura dos programas de TV, maximizando lucros e expandindo as fronteiras do mercado. Entretanto, a televisão não deixa transparecer o status de produto de suas grandes atrações, maquiando o modo como seu conteúdo é definido.

Essa atitude dissimulada nos permite dizer que uma das jogadas mais perspicazes dos reality shows é uma farsa: a dita interatividade. Assim como esclareceu Silveira, a interação é efetiva quando o papel de emissor é compartilhado, quando voz é cedida de tempos em tempos ao receptor da mensagem, permitindo-lhe ditar, também, os rumos do diálogo. Já no Big Brother Brasil, tanto quanto em A Fazenda ou na Casa dos Artistas, os rumos são definidos por normas já estabelecidas ou pela direção do programa. Quando o público vota, ele faz sua escolha dentre as opções oferecidas pelo próprio show, não interagindo, mas apenas reagindo a estímulos, sem nenhuma independência.

Mas se há aspectos tão falsos na programação de TV, como a maioria dos que a acompanham não a questionam? A resposta está na consciência humana. Teixeira Coelho, ao explicar os três tipos de signos – ícone, índice e símbolo – explicita que nossa consciência se divide da mesma forma. A consciência icônica é responsável pela intuição, pelo pensamento analógico, não se preocupando em examinar. A consciência indicial permite a constatação de fatos, a análise operativa de informações deixadas por outros. Já a consciência simbólica é investigativa, quer saber a causa, o porquê. O uso dos três campos do consciente depende dos estímulos vindos de fora, no cotidiano. A televisão, enfim, trabalha apenas com o índice, “atrofiando” de certa maneira a consciência relativa aos outros dois tipos de signo enquanto a assistimos. Em O Que é Indústria Cultural, Teixeira Coelho explica o resultado desse processo, classificando a TV como um produto da cultura industrializada:

“É isso. Toda a indústria cultural vem operando com signos indiciais e, assim, provocando a formação e o desenvolvimento de consciências indiciais. Isto é: tudo, signos, consciências e objetos, é efêmero, rápido, transitório; não há tempo para a intuição e o sentimento das coisas, nem para o exame lógico delas: a tônica consiste apenas em mostrar, indicar, constatar. Não há revelação, apenas constatação, e ainda assim uma constatação superficial — o que funciona como mola para a alienação. O que interessa não é sentir, intuir ou argumentar, propriedades da consciência icônica e simbólica; apenas, operar.”


Bibliografia:

SILVEIRA, Marlise Almeida. Big Brother Brasil: A estrutura dos Reality Shows. 2008. 21f. Dissertação (trabalho de mestrado em Comunicação Social) – Departamento de Comunicação Social, Universidade Metodista de São Paulo, 2008.

O SHOW de Truman. Direção: Peter Weir. Produção: Edward S. Feldman; Andrew Niccol; Scott Rudin e Adam Schroeder. Intérpretes: Jim Carrey; Ed Harris; Laura Linney e outros. [ Manaus: Paramount Pictures], 1998 - 102min.

COELHO, Teixeira. O que é Indústria Cultural. São Paulo: Brasiliense, 2008. 99p.

DOS SANTOS, Jair Ferreira. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 2008. 113p.